segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Do Soldado Desconhecido ao Soldado Conhecido


Intervenção proferida por ocasião da entrega dos prémios no concurso " do Soldado Desconhecido ao Soldado Conhecido"
Forte de s. Julião da Barra, 11 Novembro de 2016 

Não sendo militar, nem professor de história, nem investigador de temas militares, nem sequer descendente de antigo combatente - a minha presença nesta cerimónia  justifica-se pelo facto de eu ser o presidente da Fundação Vox Populi. Em breves palavras explicarei o que é a Fundação e qual a sua ligação à educação e à evocação do Centenário da Grande Guerra.

As Razões de instituir uma Fundação

Em 1980, criei a Marktest, uma empresa de estudos de mercado, estudos de opinião e estudos de audiência de meios de comunicação.O objeto da empresa era a recolha e tratamento de informação visando criar conhecimento. Ajudada por razões conjunturais, apoiada por uma boa equipa, a empresa teve um sucesso assinalável a nível internacional, estando presente em mais de duas dezenas de países entre eles mercados exigentes como a França, a Espanha, os Estados Unidos, o Brasil, o México e, mais recentemente, a Índia e o Egito. A indústria da informação, sobretudo a criação de aplicações - ferramentas inteligentes - que visam a produção e disseminação do conhecimento e a otimização de processos, tornou-se o sector mais rentável das últimas décadas.

Nasci na Beira Alta, no seio de uma família humilde, e cedo aprendi a viver com sobriedade. Com o apoio  da minha mulher e o consentimento dos meus filhos, em 2008, decidi criar uma fundação com o único propósito de devolver à sociedade uma parte daquilo que dela tinha recebido.Escolhemos para nosso lema a frase: "Sou português Tenho opinião, Cuido o futuro".

A Educação

Encontrámos na educação a nossa área de atuação privilegiada. As ferramentas e os procedimentos utilizadas na pesquisa de opinião e no tratamento da informação e consequente geração de conhecimento, têm um  elevado potencial pedagógico. Ao longo dos últimos sete anos temos vindo a trabalhar com escolas dos ensinos básico e secundário, propondo-lhes a realização de projetos de investigação, sobre temas livres. Refiro-me ao Nepso ( A Nossa Escola Pesquisa a Sua Opinião) e ao Rato de Biblioteca. A experiência destes anos e os testemunhos dos participantes mostram que são projetos multidisciplinares, fortemente motivadores, envolvem a comunidade escolar e local, estimulam a criatividade e despertam consciências para os problemas da cidadania e da sustentabilidade.

Transição

Na mesma época em que foi criada a Fundação Vox Populi, comecei a interessar-me pelo estudo de temas ligados à economia, aos limites ao crescimento e suas implicações na demografia, na escassez de recursos e nos efeitos perversos da poluição, em particular nas alterações climáticas. Foi em 2013 que reuni um conjunto de textos num livro a que chamei O Mundo em Transição.

A Grande Guerra

O tema das guerras, na abordagem antropológica e civilizacional interessa-me pessoalmente. Ora a Grande Guerra foi a grande porta de entrada da civilização na modernidade. Com o acumular de tensões económicas e sociais e com as contradições à época existentes na Europa, estou convicto que dificilmente poderia ter sido evitada. Quando um professor,  Dr. Gil Morgado dos Santos, participante dos nossos programas, me contou a saga do soldado António Santos, e do diário por ele escrito, interessei-me logo pelo assunto. Era o vértice "Sou Português" do nosso lema triangular a justificar também esse interesse. Com o apoio da Fundação Vox Populi, fez-se uma nova edição do livro "Saga de um combatente na Primeira Guerra Mundial - de Chaves a Copenhaga". Com vista a estimular ao interesse das escolas pelo assunto e com o apoio da Direção Geral de Educação e da Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares, o livro foi oferecido e enviado a  500 escolas dos ensinos básico e secundário.

O concurso

Os contactos entretanto estabelecidos com a Comissão Coordenadora da Evocação do Centenário da Primeira Guerra Mundial,  na pessoa de S. Exª. o Sr General Mário de Oliveira Cardoso e com a DGE, Direção Geral da Educação, permitiram lançar, em parceria com estas entidades, o concurso "Do Soldado Desconhecido ao Soldado Conhecido", utilizando as metodologias do Nepso e Rato de Biblioteca. Concorreram várias escolas e foram concluídos 10 projetos de investigação nos quais estiveram envolvidos 28 alunos e 196 alunos. Os trabalhos foram unanimemente reconhecidos pelo Júri que os apreciou como tendo elevada qualidade, e perfeitamente em sintonia com o objetivo do concurso. O trabalho vencedor "Os herois esquecidos da Guerra" foi apresentado pela escola Básica e Secundária Padre José Augusto da Fonseca de Aguiar da Beira. Envolveu um grupo de 20 alunos e foi coordenado pela Senhora Professora D. Cristina Maltez. O grupo vencedor irá realizar uma viagem à Flandres onde decorreu a ação do Corpo Expedicionário Português nos anos de 1917 e 1918. Viagem que é oferecida pela Fundação Vox Populi.


Conclusões e Agradecimentos

Foi gratificante para a Fundação Vox Populi a sua adesão a este projeto que envolveu diretamente mais de 200 alunos e professores que guardarão a memória desta experiência pela vida fora. Envolveu também a comunidade escolar, local e familiar numa estimativa de mais de 2000 pessoas. Esta iniciativa contribuiu, assim e como se pretendia, de forma muito significativa para preservar a memória da Grande Guerra. E dar a conhecer o soldado desconhecido. Para mim, contribuiu para reforçar a crença que "Ensinar a Descobrir" pode ser tão ou mais importante do que descrever ou memorizar os factos.

Termino, agradecendo às entidades participantes Direção Geral da Educação, Comissão Coordenadora da Evocação do Centenário da Primeira Guerra Mundial, aos restantes membros do Júri (DGEST Associação de Professores de História)  e a todos os professores e alunos que participaram no concurso. E ainda um especial agradecimento ao professor Dr. Gil Santos, da Escola de Caldas das Taipas, e um amante e estudioso incondicional da grande Guerra, que se disponibilizou para servir de guia ao grupo que irá visitar a Flandres. Incluo neste agradecimento o Senhor Diretor da Escola Secundária de Caldas das Taipas, Dr. José Agustio Araújo, pela sua incentivação ao projeto. Um agradecimento final à Dra. Paula Queirós, minha mulher e Diretora da Fundação. O seu empenhado e caloroso envolvimento nesta iniciativa muito contribuiu para o seu sucesso.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

A importância de um caderno em branco


Há uns meses atrás, levado por um impulso de momento, fui assistir a uma sessão cultural: tratava-se de ir ouvir um velho escritor, Eugénio Lisboa, apresentar a obra de outro velho escritor, João Bigotte Chorão. Para mim, ambos praticamente desconhecidos. Porém, o nome Bigotte trazia-me à memória uma personalidade conhecida do meu tempo de estudante na Guarda. Chegado ao outono da vida, como quem expia a culpa de ter andado na minha juventude desatento das pessoas importantes da minha cidade, penitencio-me agora, segurando, sempre que passam ao meu alcance, as pontas dos fios a elas alusivos. Assim, a modos de quem constrói uma teia, tento agora deslindar esses fios para ver se, mais velho, ainda consigo perceber aquilo que me escapou na meninice.

João Bigotte Chorão, num discurso pausado e cativante, falou do seu gosto pela literatura e pela leitura. Recordou a forma como o seu pai lhe lia, em complemento de outros lidos nas aulas, textos de autores escolhidos. E fez referência a um seu professor de português do Liceu Normal de D. João III, em Coimbra, esclarecendo que se chamavam "normais" os Liceus onde os professores aprendiam a ser professores. Chamava-se esse professor Domingos Romão Pechincha. Ao ouvir este nome, reconheci que ele me era familiar, pois terá sido, no meu tempo de estudante, professor de português no Liceu Nacional da Guarda.

João Bigotte Chorão contou que o professor Pechincha, logo no início do ano escolar, entregava aos seus alunos um caderno em branco onde eles poderiam escrever o que quisessem e que podiam mostrar-lho sempre que desejassem. E confessou, que foi a apreciação que aquele professor fez dos seus escritos nesse caderno, que muito o motivou para continuar a escrever pela vida fora. Esta história mexeu comigo. Porque ando a magicar, desde há uns tempos a esta parte, que se pode aprender mais num caderno em branco do que num livro cheio de sentenças, de fórmulas e de esquemas. Para escrever no caderno em branco os alunos precisam de tirar alguma coisa de dentro deles. E neste processo, que deve ser acompanhado de forma interativa pelo professor ou orientador, está o essencial do ato de aprender e de descobrir. Afinal, na etimologia da palavra, "educação" significa extrair e não introduzir. “Educação” vem de ex-ducere, que, traduzido à letra, poderia ter dado extraduzir, o movimento de dentro para fora. Exatamente o oposto de introduzir, o movimento de fora para dentro, que está na base do método que se impôs como paradigma do nosso sistema educativo.

Depois de ter ouvido esta história, fiquei com pena de não ter sido aluno do professor Pechincha. Para o poder acrescentar ao friso das gratas recordações que guardo de alguns - poucos - dos meus mestres do Liceu da Guarda. O imponente Carlos Costa, professor de Geografia, que nos mandava sublinhar o Atlas e me fez viajar por todos os continentes e navegar por mares e estreitos, e me fazia sonhar com paisagens e países longínquos; Artur de Sousa Ramalho, cidadão exemplar, professor de Ciências Naturais a quem ouvi, pela primeira vez, falar em ecologia; Francisco Pissarra, professor de Filosofia, espécie de irmão mais velho, que nos guiou - a mim e a mais um pequeno grupo -, na aventura de editar o Riacho, um jornal juvenil; e Adriano Vasco Rodrigues, eclético e motivador, naquela altura ainda jovem e irreverente.

O meu pai nunca me leu livros. Aliás, na nossa casa da Guarda não havia livros. Que me lembre, só tínhamos lá em casa A Velhice do Padre Eterno, do qual eu sabia recitar de cor inúmeros poemas e que o meu pai muito se orgulhava de possuir. Mas havia a Biblioteca do Liceu, a Biblioteca Municipal e as Bibliotecas itinerantes da Gulbenkian. Foi nelas que encontrei muitos dos livros que mataram a minha sede de ler e de aprender. Também não tive a sorte de um professor Pechincha me ter posto à frente um caderno em branco, onde poderia ter vertido os poemas e as teorias que inflamavam o meu espírito juvenil. Em contrapartida, e "gracias a la vida, que me ha dado tanto", encontrei nos amigos, na vida profissional e na família um interminável fólio branco, onde fui escrevendo, e quero continuar a escrever, com perseverança e entusiasmo, um hino à alegria de viver...