terça-feira, 4 de outubro de 2016

A importância de um caderno em branco


Há uns meses atrás, levado por um impulso de momento, fui assistir a uma sessão cultural: tratava-se de ir ouvir um velho escritor, Eugénio Lisboa, apresentar a obra de outro velho escritor, João Bigotte Chorão. Para mim, ambos praticamente desconhecidos. Porém, o nome Bigotte trazia-me à memória uma personalidade conhecida do meu tempo de estudante na Guarda. Chegado ao outono da vida, como quem expia a culpa de ter andado na minha juventude desatento das pessoas importantes da minha cidade, penitencio-me agora, segurando, sempre que passam ao meu alcance, as pontas dos fios a elas alusivos. Assim, a modos de quem constrói uma teia, tento agora deslindar esses fios para ver se, mais velho, ainda consigo perceber aquilo que me escapou na meninice.

João Bigotte Chorão, num discurso pausado e cativante, falou do seu gosto pela literatura e pela leitura. Recordou a forma como o seu pai lhe lia, em complemento de outros lidos nas aulas, textos de autores escolhidos. E fez referência a um seu professor de português do Liceu Normal de D. João III, em Coimbra, esclarecendo que se chamavam "normais" os Liceus onde os professores aprendiam a ser professores. Chamava-se esse professor Domingos Romão Pechincha. Ao ouvir este nome, reconheci que ele me era familiar, pois terá sido, no meu tempo de estudante, professor de português no Liceu Nacional da Guarda.

João Bigotte Chorão contou que o professor Pechincha, logo no início do ano escolar, entregava aos seus alunos um caderno em branco onde eles poderiam escrever o que quisessem e que podiam mostrar-lho sempre que desejassem. E confessou, que foi a apreciação que aquele professor fez dos seus escritos nesse caderno, que muito o motivou para continuar a escrever pela vida fora. Esta história mexeu comigo. Porque ando a magicar, desde há uns tempos a esta parte, que se pode aprender mais num caderno em branco do que num livro cheio de sentenças, de fórmulas e de esquemas. Para escrever no caderno em branco os alunos precisam de tirar alguma coisa de dentro deles. E neste processo, que deve ser acompanhado de forma interativa pelo professor ou orientador, está o essencial do ato de aprender e de descobrir. Afinal, na etimologia da palavra, "educação" significa extrair e não introduzir. “Educação” vem de ex-ducere, que, traduzido à letra, poderia ter dado extraduzir, o movimento de dentro para fora. Exatamente o oposto de introduzir, o movimento de fora para dentro, que está na base do método que se impôs como paradigma do nosso sistema educativo.

Depois de ter ouvido esta história, fiquei com pena de não ter sido aluno do professor Pechincha. Para o poder acrescentar ao friso das gratas recordações que guardo de alguns - poucos - dos meus mestres do Liceu da Guarda. O imponente Carlos Costa, professor de Geografia, que nos mandava sublinhar o Atlas e me fez viajar por todos os continentes e navegar por mares e estreitos, e me fazia sonhar com paisagens e países longínquos; Artur de Sousa Ramalho, cidadão exemplar, professor de Ciências Naturais a quem ouvi, pela primeira vez, falar em ecologia; Francisco Pissarra, professor de Filosofia, espécie de irmão mais velho, que nos guiou - a mim e a mais um pequeno grupo -, na aventura de editar o Riacho, um jornal juvenil; e Adriano Vasco Rodrigues, eclético e motivador, naquela altura ainda jovem e irreverente.

O meu pai nunca me leu livros. Aliás, na nossa casa da Guarda não havia livros. Que me lembre, só tínhamos lá em casa A Velhice do Padre Eterno, do qual eu sabia recitar de cor inúmeros poemas e que o meu pai muito se orgulhava de possuir. Mas havia a Biblioteca do Liceu, a Biblioteca Municipal e as Bibliotecas itinerantes da Gulbenkian. Foi nelas que encontrei muitos dos livros que mataram a minha sede de ler e de aprender. Também não tive a sorte de um professor Pechincha me ter posto à frente um caderno em branco, onde poderia ter vertido os poemas e as teorias que inflamavam o meu espírito juvenil. Em contrapartida, e "gracias a la vida, que me ha dado tanto", encontrei nos amigos, na vida profissional e na família um interminável fólio branco, onde fui escrevendo, e quero continuar a escrever, com perseverança e entusiasmo, um hino à alegria de viver...